sábado, 17 de junho de 2017

● Essa história é da minha família - As irmãs não se viam há 74 anos...


● A SAGA DOS VINENTE - O REENCONTRO, 74 ANOS DEPOIS. (Por Álvaro Vinente)
Bairro de Olaria, Rio de Janeiro, tarde de 5 de junho de 2017. A professora aposentada Lucília Vinente de Souza, 77 anos, chega à casa na pacata rua João Rego com um buquê de flores na mão, depois de viajar 2,7 mil quilômetros. Do lado de dentro, Neusa Vinente Ferreira, 79 anos, vive os últimos momentos de uma expectativa cultivada por semanas ao saber da viagem da visitante. Nos minutos seguintes ocorre o encontro das duas irmãs. Abraços, choros e emoção selam o fim de uma separação de mais de sete décadas. O destino quis assim, ou melhor, a história, que começa na longínqua Oriximiná, município da mesorregião do Baixo Amazonas, no oeste do Pará.
Fevereiro de 1943. O mundo está em guerra. Neusa, com cinco anos de idade, viaja para a cidade vizinha de Óbidos, onde embarca em um vapor que desce o rio Amazonas vindo de Manaus com destino a Belém. Com ela estão a avó Raimunda Pimentel de Souza, chamada Mundaia, e as tias Adília de Souza Figueiredo (Lalá) e Bárbara Pimentel de Souza, filhas de Raimunda. Completam a caravana familiar os garotos Amândio, de 15 anos, e Ernesto, de 10, filhos de Adília com o português radicado no Rio, Frederico Sil. Dias depois, na capital paraense, todos embarcam no cargueiro Afonso Pena, da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, que sai de Manaus com destino à cidade do Rio de Janeiro, então capital da República. A viagem é a concretização de um sonho de Adília, que antes da II Guerra Mundial migra para estudar enfermagem no sudeste do país e promete voltar a terra natal para buscar a mãe e a irmã solteira.
O Afonso Pena, de classe misto, entre cargas e passageiros, segue seu curso normal a 10 nós de velocidade com escalas em São Luiz-MA, Fortaleza-CE e Recife-PE. Ao sair da capital pernambucana acompanha um comboio de navios como proteção a eventuais ataques de submarinos do Eixo, uma ameaça constante à navegação no Atlântico sul. Mas desgarra-se do comboio ao singrar pelas águas do litoral da Bahia. Isolado, torna-se presa fácil. Ao anoitecer do dia 2 de março, uma terça-feira de céu escuro, por volta das 19h, a cerca de 250 km de Porto Seguro, é torpedeado pelo submarino italiano U-Boat Barbarigo, comandado pelo capitão-tenente Roberto Rigoli. A explosão do torpedo no casco de aço provoca uma confusão generalizada a bordo. É pânico total. A família ocupa dois camarotes. No primeiro se alojam Neusa, vovó Mundaia e Amândio. No segundo, Adília e Ernesto, porque Bábara está no convés de namoro com um oficial mercante. O navio começa afundar pela proa. A tripulação baixa as baleeiras, mas algumas deslizam pelo costado até atingir as hélices em movimento. Várias pessoas morrem retalhadas. Amândio, que sabe nadar, cai na água fria do oceano. Retorna ao navio e consegue puxar Neusa para fora e a leva para uma balsa, pequeno barco salva-vidas de borracha, onde já se encontram alguns passageiros e tripulantes, entre elas, dona Nair Café. A menina crava as unhas na perna da mulher e adota-a como seu anjo da guarda. Amândio volta ainda duas vezes ao casco do Afonso Pena, em busca da mãe, do irmão e da avó. Não os encontra, mas ajuda no resgate de outras pessoas e não é mais visto pela prima. Embora ferido de morte, o Afonso Pena continua navegando, não há tempo para desligar as máquinas. O radiotelegrafista Pedro Mota Cabral não para de comunicar o incidente e pedir socorro. O Barbarigo vem à tona. Faz parte da estratégia de guerra o comandante emergir o submarino para identificar o navio torpedeado. Roberto Rigoli manda disparar o canhão dianteiro sobre o passadiço matando Cabral. A cerca de 5 quilômetros do local do ataque, o capitão de longo curso João Batista Rodrigues vê seu navio submergir para sempre.
Durante três dias, Neusa e o grupo vagam nas águas encapeladas do Atlântico. Se alimentam de bolachas salgadas e água potável reservadas na balsa para essas emergências. Tubarões rondam a área e assanham-se à espera de um banquete. O calor é intenso de dia e noturno, o frio. A pequena embarcação está superlotada e pode ir a pique, relata Neusa. O instinto mais primitivo da sobrevivência leva os náufragos a tomarem uma decisão. Um homem, bastante ferido no episódio das hélices, é jogado ao mar. No início da noite do dia 4 de março são avistados e resgatados pelo petroleiro norte-americano Tennessee. A subida ao convés é difícil. A escadinha de corda arriada pela tripulação ianque não é longa o suficiente para alcançar a altura do escaler. A solução é aproveitar o banzeiro e quando a onda do mar eleva o barco, o sobrevivente agarra a escadinha e sobe. Assim fez a menina Neusa amparada por Nair Café.
Bárbara, jovem e bonita, namora o oficial no convés, quando o Barbarigo torpedeia o Afonso Pena. O marinheiro, experiente, a conduz para a extremidade da popa, onde ficam à espera do afundamento. Ela veste uma saia comprida que pode levá-la para o fundo. Ele corta à faca a vestimenta pela metade e orienta a namorada a pular no mar pouco antes da derradeira perda do navio para não ser tragada pelo influxo das águas. Bárbara mergulha e bóia próximo a uma baleeira, que alcança a nado.Tempo depois, Amândio atinge o mesmo barco.
Quando Neusa sobe ao convés do Tennessee, a surpresa: encontra Bárbara e Amândio. Os três ainda tem esperança de que Mundaia, Adília e Ernesto estejam vivos. O tempo passa e as esperanças se evaporam com o vento frio do oceano. O Afonso Pena, o 28º navio brasileiro torpedeado pelos submarinos do Eixo Alemanha nazista e Italia fascista, tem um saldo trágico: 125 mortos e 117 sobreviventes. O quarto maior em número de vítimas fatais.
A história teria outro desfecho se uma carta enviada do Rio de Janeiro para Oriximiná tivesse chegado às mãos da destinatária, em meados de 1942. Na missiva, Frederico Sil pede à mulher, Adília, que permaneça no Norte e somente retorne ao Sudeste após o término da Segunda Guerra Mundial. Ele teme a ação dos submarinos alemães e italianos na costa brasileira. E tem razão. Dos 34 navios verde-amarelos torpedeados pelos nazifascistas na II Guerra, 33 vão a pique após o Brasil romper relações diplomáticas com o Eixo, fato histórico ocorrido em 28 de janeiro de 1942. Após essa data, 19 embarcações são atacadas resultando em 742 mortos até 22 de agosto, quando Getúlio Vargas declara guerra à Alemanha e à Itália. Entre essas tragédias, a do Baependi, no litoral de Sergipe, com 270 brasileiros mortos, no dia 15 de agosto. Mais 14 navios ainda vão ao fundo até 1944. A carta chega à residência de Raimunda Pimentel de Souza, alguém a recebe e não a entrega à Adília. Esta, sem saber dos perigos da Guerra, programa a viagem de volta ao Rio para o início de 1943.
Os sobreviventes a bordo do Tennessee ainda navegam por mais três dias e aportam na cidade do Rio de Janeiro no dia 7 de março. É domingo de carnaval. As escolas de samba desfilam na avenida Rio Branco e a Portela, pela quinta vez, sagra-se campeã com o enredo “carnaval de guerra”.
Quatro meses após abater o Afonso Pena, o submarino U-boat Barbarigo desaparece na Baía de Biscaya, na Espanha, sem sobreviventes.
Nair Café tem a perna amputada por causa de infecção e vai morar nos Estados Unidos. Fomenta, no Brasil dos anos 1950, a prática do voluntariado.
No Rio, Frederico se une à cunhada Bárbara e assumem a criação de Amândio e Neusa. Casam-se 10 anos depois do incidente. Da união nasce a filha Adília Sil, que vive em São Paulo. Frederico morre em 1986, Amândio em 2000, aos 72 anos, e Bárbara sete anos depois.
Em setembro de 2017, Neusa Vinente, casada com Tarcísio Ferreira, completa 80 anos de idade, forte, guerreira e amável. É a quarta entre os 14 filhos de Braz Fernandes Vinente com a primeira esposa Lucília Figueiredo Vinente, a Rosê, esta filha de Raimunda Pimentel de Souza com o descendente de português Inocêncio José de Figueiredo.
Neusa é a única sobrevivente viva da fatídica viagem do navio Afonso Pena.

(Fontes: Relatos de Neuza Vinente // Sander, Roberto. O Brasil na mira de Hitler: a história do afundamento de navios brasileiros pelos nazistas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.// Medeiros, Rostand. O afundamento do “Afonso Pena” no Atlântico Sul. tokdehistoria.com.br)

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