segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

● Não é um desafio simples de resolver e a solução passa por uma coalização de forças políticas...

● NA ILHARGA DA CASA DA GENTE - Dona Maria deveria ter para lá de 80 anos quando a conheci. Morava sozinha em uma casa ampla de madeira, com dois grandes cômodos, um jirau na cozinha, fotos antigas nas paredes e muita parcimônia no coração. Uma vida simples e ribeirinha. Era 2009 e D. Maria nos contava, às margens do calmíssimo Paracuúba, em São Sebastião da Boa Vista, sobre sua relação com o rio. “Ele sobe e desce todos os dias, eu tomo banho nele. Minha vida é aqui nesse rio - ele lava e leva tudo “…

Aquela frase nunca me saiu na cabeça. Nossa vida amazônica tem essa relação com as águas, seus fluxos de chuvas e marés e seu trabalho cotidiano de encher, vazar… e levar. Sempre me perguntei por que parte da população tem um comportamento inconsequente com os resíduos que produz, sobretudo nos centros urbanos. Me parece que a concepção distorcida do “lá fora”, do que “vai pra outro lugar” impele os deseducados a descartar, sem a menor cerimônia, sacos de lixo, colchões, entulho e até móveis velhos em canais, bueiros, valas e terrenos de todos e de ninguém - espaços de escoamento, de passagem, de impermanência.

Mas a percepção poética do “rio que lava tudo” formulada por D. Maria das águas calmas do Marajó não se aplica às águas que correm e morrem vetorizando doenças e espalhando a imundice em cidades carentes de um plano responsável de gestão de resíduos sólidos.

Ananindeua acabou de fazer 80 anos e não merece mais ser esse ponto fulcral para a solução de um problema coletivo e metropolitano, carregando o pesado custo da pressão ambiental prevista com a reabertura de um lixão - sim, um lixão, não um aterro - localizado em seu território.

Em 2014, iniciei uma jornada de 2 anos documentando a luta e a angústia de duas mil famílias que tiravam seu sustento do Aurá. Se não fosse a tenacidade desesperada por sobrevivência daqueles catadores de material reciclável, teríamos hoje um passivo ambiental muito mais grave em volume e elementos poluentes.

Com o fechamento do aterro de Marituba - um serviço caro, ineficiente e ultrapassado - as montanhas de resíduo do Aurá que nunca receberam um plano de biorremediação poderão voltar a crescer, contaminando ainda mais o lençol freático, nas bordas de uma Unidade de Conservação onde estão os dois lagos que abastecem Belém: Água Preta e Bolonha.

Um projeto consorciado entre os municípios da região metropolitana, modelo previsto no Estatuto das Metrópoles, é o caminho mais seguro para um plano de gestão amplo, que inclua, entre outras modalidades, a coleta seletiva estruturada e bem articulada, a educação ambiental voltada para diferentes públicos com estratégias de comunicação específicas e a implementação de um parque industrial de transformação de resíduos sólidos com atração de investimentos, a partir de políticas de isenção fiscal. São soluções socialmente justas, ambientalmente eficientes e tecnologicamente modernas numa área que tem hoje mais de 2,6 milhões de habitantes e gera quase duas mil toneladas de resíduos por dia.

Não é um desafio simples de resolver e a solução passa por uma coalização de forças políticas. Até porque, não tem “lá fora” em nosso planetinha azul. As águas que banham a casa de D. Maria, a 129 quilômetros de Belém, são as mesmas que dançarão no leito de nossos rios, ruas e igarapés, na ilharga da casa da gente.

*Úrsula Vidal - é jornalista e Secretária de Estado de Cultura do Pará.

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