●
O FRACASSO DO 8 DE JANEIRO - Em
seu mais recente livro, Como Salvar a Democracia (Cia das Letras),
Steve Levitsky e Daniel Ziblatt fazem uma comparação entre a reação dos Estados
Unidos à invasão trumpista do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, e a do Brasil
em relação à intentona bolsonarista de 8 de janeiro de 2023. Sua
conclusão é surpreendente: “O Brasil rechaçou a sua mais recente ameaça à
democracia, ao contrário dos Estados Unidos”. Os autores relembram que os
republicanos nos Estados Unidos defenderam e protegeram Donald Trump e
até hoje, na sua grande maioria, não reconhecem sua derrota eleitoral. Aqui no
Brasil o desenrolar da história foi diferente. Na mesma noite em que a vitória
de Lula foi anunciada, os principais aliados de Jair Bolsonaro reconheceram a
derrota de forma pública e inequívoca e posteriormente jogaram a pá de cal. “A
direita brasileira também condenou vigorosamente a insurreição de 8 de
janeiro”, dizem. Estes episódios ressaltam a diferença de postura dos partidos
da direita tradicional do Brasil e dos Estados Unidos. Enquanto a maioria dos
líderes republicanos se recusa até hoje a aceitar publicamente os resultados da
eleição de 2020, no Brasil o resultado da eleição de 2022 é uma questão
pacificada. Outra diferença fundamental: os republicanos se empenharam para
frustrar esforços do Congresso para impugnar e condenar Trump. Já no Brasil,
Bolsonaro foi condenado pela Justiça Eleitoral, sem maiores contestações. Assim,
por incrível que possa parecer, os partidos e as instituições brasileiras deram
uma resposta mais satisfatória do que os americanos. Como dizem os autores
de Como Salvar a Democracia: Bolsonaro não chegou mais longe “porque as
elites políticas e militares deixaram claro que não o apoiariam”.
Certamente essa não foi a causa única para o fracasso da
tentativa de golpe que fez do 8 de janeiro o Dia da Infâmia, para utilizar a
expressão cunhada pela ex-ministra do STF, Rosa Weber. Mas a conclusão de
Levitsky e Ziblatt guarda sintonia com as palavras de Lula, pronunciadas no sua
mensagem de Natal: “felizmente a tentativa de golpe causou efeito contrário.
Uniu todas as instituições, mobilizou partidos políticos acima de ideologias,
provocou pronta reação da sociedade.”
Isso não aconteceu nos Estados Unidos. Sua polarização
até hoje é bem mais intensa do que a brasileira e paira sobre a democracia
americana a ameaça de retrocessos face a resiliência da candidatura Donald
Trump em 2024.
Uma das grandes causas para a intentona ter flopado foi a
falta de uma ampla base social para o golpe. Seus arquitetos confundiram a
votação expressiva de Bolsonaro como aval para a ruptura democrática. A base de
sustentação para um golpe estava reduzida ao núcleo duro e radical do
bolsonarismo. Governadores como Tarcísio de Freitas (SP) e Romeu Zema (MG)
fizeram questão de, rapidamente, condenar o assalto aos três poderes da
República.
Para entender sua derrota convém traçar um paralelo entre
o Brasil do 8 de janeiro de 2023 com o de 31 de março de 1964. Naquela época, o
golpe foi vitorioso por contar com uma base social de massas, principalmente na
classe média, e por ter apoio de parte expressiva do Congresso Nacional, do
empresariado e das Forças Armadas, como instituição. Basta citar um fato
histórico. O cargo de presidente da República foi declarado vago pelo
presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade, quando João Goulart
ainda se encontrava no território nacional.
Também a conjuntura internacional favoreceu o golpe, com
o mundo dividido em dois blocos ideológicos e em plena guerra-fria. O Brasil
estava na área de influência dos Estados Unidos, assim como a América do Sul.
Daí o apoio dos americanos aos golpes do Brasil, do Uruguai, do Chile e da
Argentina.
Todas essas condições faltaram à conspiração mal-sucedida
do 8 de janeiro. O Supremo Tribunal Federal foi fundamental na contenção de
incursões golpistas e na defesa da legalidade, das eleições e da democracia. Do
mesmo modo se posicionaram os presidentes das duas casas legislativas, o
empresariado, a sociedade civil e as instituições da República.
Se em 1964 os Estados Unidos tiveram um papel importante
para a vitória do golpe, a história foi outra em janeiro do ano passado. O
mundo atual é bem diferente da época da guerra-fria. Sinal dos novos tempos: o
governo americano e seu presidente Joe Biden pressionaram para que o
pronunciamento das urnas fosse respeitado, alertando para possíveis retaliações
em caso de uma ruptura democrática no Brasil.
Pode-se especular se a história teria outro desfecho caso
Donald Trump tivesse derrotado Joe Biden. Desde a Segunda Guerra Mundial, a
doutrina militar brasileira tem identificação com a dos Estados Unidos e é
impensável a modernização de nossas Forças Armadas sem a aquisição de materiais
bélicos americanos. Mas certamente a posição de Biden contribuiu para nossos
militares não ingressarem em tresloucada aventura.
Foi determinante o caminho seguido pelos militares desde
a redemocratização de 1985, assegurando o mais longo período de nossa história
republicana sem intervenções ou quarteladas. Ao se dedicarem até 2018
exclusivamente às suas funções constitucionais, as Forças Armadas se
transformaram em uma das instituições mais respeitadas pelos brasileiros.
A infiltração do bolsonarismo nas Forças Armadas
revelou-se mais profunda do que se imaginava, mas, apesar disso, não se viu a
instituição envolvida no Golpe. Não houve um só movimento de tropas, apesar de
o país ter 680 estabelecimentos militares. Isso demonstra a importância de ter
uma cadeia de comando com controle da tropa e do estamento militar estruturado
na hierarquia e disciplina.
Talvez esteja aqui um grande acerto de Lula. Observou o
critério da antiguidade na escolha dos comandantes militares e escolheu um
ministro da Defesa de perfil conciliador. A estratégia revelou-se correta. Em
sua nota de Natal à tropa, o comandante do Exército, general Tomás Paiva,
deixou claro que quer sua tropa focada “em coisa de soldado”, deixando a
política de fora dos quarteis.
Voltando a Steve Levitsky e Daniel Ziblatt, talvez os
autores de Como Salvar a Democracia tenham sido exageradamente
otimistas na leitura de como superamos uma das mais graves ameaças à nossa
democracia, desde o fim do regime ditatorial. Mas é alentador ler as palavras
de um general entrevistado por Miriam Leitão: “Não pode haver essa percepção de
que o Brasil pode ter um retrocesso que não cabe mais no século XXI. Os
problemas da democracia se resolvem na democracia”.
(Fonte Metrópoles – Por Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação e vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fique a vontade para comentar o que quiser, apenas com coerência e sem ataques pessoais.