segunda-feira, 17 de junho de 2024

● ABORTO VOLTA A SER DISCUTIDO NO BRASIL – O Fantástico trata da PL sobre aborto em tramitação acelerada na Câmara que provocou debates intensos e divide opiniões – O 'Fantástico' também entrevistou o deputado autor do projeto e a família de menina de 10 anos que teve de realizar aborto em 2020, após ser estuprada pelo tio – Leia a matéria completa aqui ▼

 

● UM PROJETO DE LEI EM TRAMITAÇÃO ACELERADA NA CÂMARA DOS DEPUTADOS provocou um debate intenso esta semana. O texto ainda não aprovado qualifica como homicídio o aborto a partir de 22 semanas de gestação, mesmo em casos de estupro. Isso em um país em que, a cada oito minutos, uma menina ou mulher é estuprada, de acordo com dados do Fórum de Segurança Pública.

Em 2020, religiosos tentaram impedir que uma criança de dez anos, violentada pelo tio, fizesse o aborto a que tinha direito por lei. Ela foi levada do Espírito Santo a Pernambuco para ter acesso ao procedimento. A história ganhou repercussão nacional. Quatro anos depois, a família desta menina, hoje adolescente, falou pela primeira vez, com o "Fantástico".

Na última quarta-feira (12), os deputados decidiram, em 23 segundos, que o PL 1904/24 vai tramitar em regime de urgência. Ou seja, passando direto para a votação em plenário, sem análise de comissão, como é o procedimento habitual.

● O ABORTO NO BRASIL SÓ É PERMITIDO EM TRÊS CASOS: se a gravidez for resultante de um estupro; se colocar a vida da mãe em risco; ou se o feto for anencéfalo.

Nessas três situações, o aborto é legal e não existe na lei qualquer limite de tempo de gestação. Fora estes três cenários, o aborto não é permitido no Brasil — e é crime.

A proposta que deve entrar em votação no plenário da Câmara atribui uma pena quando o aborto ocorrer depois da vigésima segunda semana de gestação.

O procedimento seria considerado, então, um homicídio — com pena de seis a vinte anos de prisão. Tanto para a grávida quanto para quem ajudá-la a abortar.

O projeto não altera a lei nos casos de anencefalia e de gravidez com risco para a mãe.

O "Fantástico" localizou e conversou pela primeira vez com a família da menina do Espírito Santo, que em 2020 comoveu o país, porque teve que lutar na justiça pra interromper a gravidez, depois de ter sido estuprada pelo tio.

● A AVÓ É QUEM TEM A GUARDA DELA E A CHAMA DE FILHA - "Com certeza sou vó e mãe, porque eu peguei 27 dias de nascida para mim. Para mim, é minha. Ninguém toma, que eu não deixo", diz a avó.

A menina hoje é uma adolescente de 14 anos. A família esconde a identidade por uma questão de segurança. Há quatro anos, eles tiveram a identidade invadida durante um momento traumático.

"Nossa, destruiu a família toda, na verdade. Desmoronou toda a estrutura da família", fala um tio.

A avó da jovem conta que teve a casa invadida por um desconhecido.

"[Ele disse:]V'im aqui dar uma palavra para a senhora, não pode fazer o aborto da sua filha'. Eu: 'por que?'. 'Porque a senhora está pecando. Que a senhora está fazendo um negócio que Deus não gosta'", diz ela.

A menina foi estuprada por um tio. Ele continua preso. A avó que diz que nunca suspeitou dele.

"De jeito nenhum. O que aconteceu, eu fiquei de boca aberta. Eu nunca imaginava."

O estuprador usava de ameaças para manter a vítima calada.

"Dizia que se ela falasse alguma coisa ia matar o pai dela. Ia matar, eu, matar o avô, os tio e principalmente a tia, que ela gostava muito, que era a mulher dele."

A interrupção da gravidez da menina chocou o Brasil. Aos 10 anos, ela precisou entrar escondida no hospital para fazer algo que ela e a família queriam e que tinha todo o amparo da lei.

"Foi uma descoberta tardia. Por ser uma menina, por ter medo das ameaças que estava sofrendo, ela não conhecia o seu corpo. Então ela foi levada pela família para o hospital da cidade. Naquele hospital, foi confirmada a gestação. Mas dali ela foi retirada da família", diz Anna Luiza Sartorio Bacellar, advogada da família.

"Ela passou alguns dias em um abrigo. Após uma sentença judicial, é que ela foi levada para um hospital de referência e, na sequência, após ser negado o procedimento, ela foi levada para Pernambuco."

● OPINIÕES DIVIDIDAS - Esta semana, diferentes vozes ecoaram pelo país. Nas redes sociais, nas ruas, protestos em vários estados. Na maioria, de mulher, mas também de homens, entidades civis e artistas.

"Então, quer dizer, os estupradores, pelo Congresso, têm mais direitos do que as mulheres e crianças que são estupradas", disse a cantora Daniela Mercury em rede social.

"As vítimas precisam de atendimento médico urgente, pra ter acesso a medicamentos que evitem gravidez e doenças. Precisam também de apoio, se precisar interromper a gravidez decorrente do estupro", afirmou o ator Lázaro Ramos no Instagram.

Já alguns defenderam o projeto.

"Todo aborto é o assassinato de um inocente. Então, mesmo nos casos mais extremos, como por exemplo, um estupro, o assassinato da criança não apaga o crime, não vai fazer com que aquele trauma vá embora", falou o ator Juliano Cazarré.

"É um absurdo ela ser punida, porque ela já é punida. Ela já foi estuprada. Ela não quer continuar a gravidez", diz o diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), Olimpio Barbosa de Moraes Filho.

"Não é por maldade que ela ultrapassa 22 semanas, é porque o Estado não oferece o abortamento no seu município."

Barbosa foi quem atendeu a vítima capixaba, em 2020. Ele diz que a menina não tinha noção da gravidez.

"A avó percebeu — e percebeu dentro abaixo de 20, de 22 semanas, 19 semanas. Mas ela foi obstruída de ter acesso ao serviço em Vitória, que, por norma técnica de lá, a conduta eles têm um limite de 22 semanas, mas não é a lei. A lei não proíbe acima de 22 semanas."

O Conselho Federal de Medicina publicou em abril uma resolução que proíbe os médicos de fazerem assistolia fetal, procedimento usado para a interrupção da gravidez após 22 semanas nos casos de aborto legal decorrente de estupro.

Na prática, a norma contraria a lei, que não estabelece limite máximo. A resolução foi suspensa em caráter liminar pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

De acordo com o dr. Olimpio Barbosa, apenas 3% dos mais de cinco mil municípios brasileiros possuem atendimento, no SUS, para o aborto legal.

"A menina estuprada ou a mulher estuprada, ela quer ser atendida o mais rápido possível. É que o Brasil não permite, então está sendo punida várias vezes. E, agora, proibir?", fala Barbosa.

"E aí eu eu digo, a gente está realmente botando uma pá de cal nesta menina que já está nessa situação de extrema vulnerabilidade psicológica, emocional, social", afirma Luciana Temer.

"E aí você pega e diz: 'não, minha filha, você está grávida do seu pai, mas você vai ter que ter esse filho, sim, porque o Estado resolveu que você vai ter que ter esse filho'."

● DISCUSSÃO NA CÂMARA E NO SENADO - No Congresso, o assunto também dividiu opiniões. O presidente da Câmara, Arthur Lira, disse que o projeto de lei ainda não foi aprovado, e que terá uma relatora mulher.

"O tema é polêmico. Se não tiver apoio ele não será aprovado, ele não será sequer discutido. O relator, que eu já fiz compromisso com a bancada feminina, que nesse projeto será uma parlamentar moderada, que não defenda posições nem pró e nem contra", fala Lira

"Portanto, sem açodamento, sem nenhum tipo de especulação, ninguém é a favor de estuprador e muito menos contra a vítima do estupro."

No Senado, o presidente Rodrigo Pacheco garantiu que vai respeitar os trâmites, e que a proposta passará por comissões antes de ir a votação.

"Um projeto dessa natureza, que é evidentemente de matéria penal e que guarda de fato muita divisão, muita polêmica, é muito importante se ter cautela em relação a ele. Evidentemente, um projeto dessa natureza teria o caminho de se incluir dentro do bojo da discussão de código penal no Senado Federal, ou ao menos a submissão às comissões permanentes da casa pra que haja um amadurecimento em relação a ele."

No encerramento da cúpula do G7, na Itália, o presidente Lula criticou o projeto de lei.

"Eu sou contra o aborto, entretanto como o aborto é realidade, a gente precisa tratar o aborto como questão de saúde pública. E eu acho que é insanidade alguém querer punir a mulher em uma pena maior do que a do criminoso que fez o estupro. É no mínimo uma insanidade isso."

● O AUTOR DO PROJETO - Em entrevista ao Fantástico, o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), autor do projeto de lei 1904/24, diz que a PL é uma reação a um pedido do PSOL ao STF.

"Na verdade, o projeto é uma reação à ação do PSOL junto ao Supremo Tribunal Federal. Assistolia é um procedimento médico que é colocar uma injeção no coração do bebê e ele tem um infarto fulminante. Nós estamos tratando aqui não de embriões no primeiro, no segundo mês, nós estamos tratando de vidas com 5 meses e 2 semanas. São as 22 semanas."

No caso da menina estuprada pelo tio, citada no projeto, ele diz que ela "jamais seria punida por isso".

"Ela é inimputável. Quem disse isso é a lei brasileira. Ela jamais seria punida por isso aqui. Este projeto é tão light que só pune depois de 5 meses e meio de gestação, que é uma vida, segundo a OMS, segundo o Conselho Federal de Medicina. Eu estou preocupado com este bebê e, lógico, esta menina jamais seria imputável, porque quem garante isso é o código penal brasileiro."

No entanto, no texto do projeto de lei não há qualquer referência a isso. Inimputáveis são os menores de idade até 12 anos. O deputado, membro da bancada evangélica, não mencionou que menores de idade acima dos 12 anos respondem por ato infracional, são apreendidos e cumprem medidas socioeducativas.

Cavalcante afirma que projetos passam por ajustes ao longo de sua construção, mas que não pensa em mexer no texto.

"Eu não gostaria e não vou aceitar que existe ajuste para minimizar o que a gente está fazendo. Agora para aumentar, por exemplo, se a relatora, ao ser nomeada, quiser inserir pena maior para o estuprador, eu apoio e incentivo enormemente. Agora, o cerne do projeto, a defesa do bebê indefeso de 5 meses e meio, eu não vou abrir mão em nenhum ponto", afirma o deputado.

"Essa pena quem vai decidir é o juiz a seu critério. Já está efetuado no parágrafo único, que o juiz inclusive pode não aplicar a pena se ele entender assim. Então o projeto é muito light, o projeto não é radical como as abortistas e as feministas estão querendo colocá-lo."

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou nota em que considera importante a aprovação do projeto de lei.

Nela, a organização diz: "É ilusão pensar que matar o bebê seja uma solução. O aborto também traz para a gestante grande sofrimento físico, mental e espiritual. Algumas vezes até a morte".

Já a primeira-dama, Janja da Silva, se posicionou contra o projeto de lei nas redes sociais. "Isso ataca a dignidade das mulheres e meninas, garantida pela Constituição Cidadã. É um absurdo e retrocede em nossos direitos", publicou ela.

"Ninguém está discutindo a legalização do aborto neste momento. O que a gente está discutindo agora é garantir a meninas e mulheres vítimas de extrema violência e a maioria esmagadora, o direito de interromperem uma gestação e conseguirem se recuperar minimamente de traumas psicológicos gerados por esta violência", diz Temer.

"Isso é uma coisa tão absurda imaginar que alguém defenda isso. É muito triste. É uma sociedade misógina, que tem ódio às mulheres. Então é tudo hipocrisia, porque a gente sabe que quando acontece com a família, eles pensam diferente", afirma Barbosa. (Fonte:  Fantástico)


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